Houve um problema teológico comum - entre tantos outros também partilhados - que vibrou as cordas do pensamento muçulmano e do pensamento cristão medievais, com apenas poucos séculos de intervalo. Digo problema teológico, mas não era menos um problema filosófico, porque a teologia serve-se da filosofia - ancilla theologiae - para alcançar as conclusões que constituem o seu objecto próprio. O mote do problema, que suscitou numerosas paixões, bem como uma infindável permuta de argumentos com a pretensão de provar cada uma das partes da controvérsia, foi dado pela descoberta da doutrina aristotélica, primeiro pela escolas de teologia muçulmanas, depois, pelas escolas de teologia cristãs. A questão era a da eternidade do mundo - é o mundo eterno ou teve um primeiro momento no tempo?; no seu sistema de coisas, Aristóteles pressupõe a eternidade da matéria, porém, a revelação corânica e a revelação bíblica descrevem com suficiente clareza a criação do universo no tempo; a Bíblia diz: «No princípio, criou Deus o céu e a terra» (Gn, 1:1), e o Alcorão fala de Allah como aquele que «criou a Terra em dois dias» (Surata 41:9) - eis, pois, o conflito surgido no seio das escolas das duas tradições religiosas. A razão confirma a fé neste ponto ou desmente-a?; ou, simplesmente, emudece?
Al-Farabi, Avicena e Averróis, os nomes sonantes da filosofia islâmica do tempo, apoiaram decididamente a tese da eternidade do mundo - o que levou, por seu lado, os teólogos, com o fito de defender a Revelação, a querer provar que o mundo começara em um dado momento. É que, além disto, a resposta a esta pergunta é fecunda de posteriores consequências: como conciliar a causalidade necessária do universo com a liberdade divina?; a contingência temporal da criação, pelo menos, é sinal evidente de um acto de vontade do Criador. Al-Ghazali tomou a seu cargo a missão de refutar o aristotelismo que se apoderara da escola árabe e autografou uma Destruição dos Filósofos - obra que mereceu de Averróis, como se toda a discussão não fosse senão um círculo em que se pode girar indefinidamente, uma Destruição da Destruição dos Filósofos.
Tomás de Aquino, no opúsculo que redigiu contra os murmurantes, separa bem as águas. Eterno ou não o mundo, começado no tempo ou sem um primeiro momento em que existisse, nenhuma das partes da controvérsia põe dúvidas sobre a criação, que é uma questão de natureza, necessariamente abstraída de contingências temporais: o que é dependente, pode ser eternamente dependente. Por outro lado, como não entra na definição das coisas o tempo, não pode haver demonstração do começo do mundo - que o mundo começou, sabem-no os cristãos, com certeza de fé, mas nunca o saberão com certeza metafísica. O estudo do problema pertence à física, à ciência que estuda as coisas naturais, particularmente à sua parte experimental, que avança ao passo das hipóteses.
Ainda hoje, alguns filósofos há que querem provar por argumentos metafísicos o começo do mundo. Lembro-me, por exemplo, de William Lane Craig, que tem o ensejo de provar a premissa menor de um argumento para a existência da divindade, recorrendo aos paradoxos de Hilbert sobre o infinito. Antes dele, outros falaram da impossibilidade de uma duração infinita, da impossibilidade de percorrer ao infinito as unidades sucessivas de tempo. Vãs elocubrações. Tomás de Aquino já indicara a falácia destes raciocínios, séculos atrás, em um breve parágrafo: a totalidade do tempo não é dada a uma só vez, mas sucessivamente; o passado deixou de existir e o futuro ainda não é: não há infinito numérico actual, acompanhado das suas contradições. A imaginação atalha pelo caminhos do pensamento e confunde-lhe as inferências.
As melhores evidências de um começo do universo - apenas e sempre prováveis - são as fornecidas pela astrofísica contemporânea. Vesto Slipher anunciou, no início do século XX, que o universo estava a fugir de nós, pelo que a jornada cósmica deverá ter um ponto de partida. As observações de Hubble confirmaram-no. A hipótese da grande explosão primordial de uma singularidade de matéria, a partir da qual o universo ainda hoje se expande, sobre o fluxo de energia que dali resultou - conhecida como teoria do Big Bang -, parece apontar o caminho de regresso a um começo de tudo, sinalizado pela radiação cósmica de fundo daquele deflagração genésica.
E há consequências racionais a tirar deste facto - suposta a sua verificação? Sim. Mas a reflexão filosófica de muitos séculos já lhe apôs os limites: não é necessário prová-lo, ou sequer supô-lo, para adquirir a certeza da dependência do mundo corpóreo da acção criadora de Deus.