sexta-feira, 8 de maio de 2015

O malabarista de universos

As mais recentes estimativas da ciência concluem que o universo existe há 13.7 mil milhões de anos. O seu diâmetro mede-se nuns incomensuráveis 91 mil milhões de anos-luz e calcula-se que nele se abriguem 100 mil milhões de galáxias. Em relação ao homem, as estimativas da ciência são bem mais modestas. Aquilo que a biologia diz ter sido o primeiro humano, no sentido pleno do termo, fez a sua aparição há somente 200 mil anos neste pequeno e insignificante grão de areia cósmico a que chamamos Terra. Tudo indica que o homem, que se ergueu do pó num universo que existiu muito antes dele e que existe na sua maior parte sem ele, não tem nenhuma relevância no curso geral das coisas. E uma parte dos homens, quando medita por um instante nisto, conclui que Deus não existe.

Esta transição de pensamento da insignificância do homem para a inexistência de Deus, embora levemente disparatada em termos lógicos, conclui, na verdade, por um ateísmo teologicamente muito preciso. Por pouco não se poderia dizer que é um ateísmo cristão. Este ateísmo parte do mesmo pressuposto que o cristianismo: que entre o homem e Deus deve existir uma tão íntima ligação, que se Deus criou o mundo, o criou para o homem. Mas, se não o criou para o homem, então, não o criou de todo. Afinal, o universo é incompreensivelmente velho e o ser humano é para ele um recém-nascido; durante os milhões e milhões de anos em que o mundo foi um espectáculo sem espectador, Deus parece ter hesitado nos seus propósitos humanistas.

Se se quiser examinar a questão de maneira rigorosa, ver-se-á, porém, que a informação científica que sustenta esta conclusão pelo ateísmo é a mesma que a derruba. Porque, não obstante a provecta idade do universo e a sua maravilhosa vastidão, a ciência diz-nos hoje que houve um momento em que ele era novo, acabado de nascer, e todo o tempo, espaço, matéria e energia estavam concentrados num ponto minúsculo. E a pergunta pelo que trouxe à vida todas estas coisas que não se encontravam em parte alguma, é a pergunta por um Criador. Para este assunto, nada importa que o mundo seja muito velho, porque também já foi muito novo; nem importa que seja muito vasto, porque também já não foi nada. No âmago daquela objecção não está a dúvida sobre Deus, mas a dúvida sobre o homem.

Copérnico é tido hoje como o fautor de um golpe solene desferido no orgulho humano, quando, a bem da correcção da ciência astronómica, tirou a humanidade do centro do universo. Não muito tempo depois, Descartes observava, e a ciência futura viria a dar-lhe razão, que havia uma imensidão de coisas no mundo que o homem não conhecia e das quais não se podia servir; e, por esta razão, não lhe parecia provável que o universo tivesse sido feito a pensar nas necessidades da humanidade. Esta foi a entrada na história de um sentimento que pervadiu a mentalidade contemporânea, o sentimento contrário à concepção do homem como alguma coisa de peculiar. Visto bem o universo, confrontadas as suas dimensões inabarcáveis com a ridícula pequenez de um indivíduo humano, este aparenta ser mais um agregado de pó estelar sem privilégio, erguido por um momento sobre a terra e logo disperso pelo mesmo vento cósmico que o formou. Esta maneira de ver as coisas tem alguma coisa de poético, porque sugere uma unidade fundamental de tudo. Todas as maravilhas do cosmos, desde o mais pequeno átomo de carbono à maior estrela, envolvendo os animais e os homens, onde quer que eles existam, permanecem em pé de igualdade umas diante das outras, no que têm de irrisório no pano de fundo tão vasto em que se perdem.

Mas, por mais sedutor que seja este pensamento, há outro que se faz presente, também ele intrigante, que é o de notar que se a dimensão do universo é tão avassaladora como parece ser, pelo menos nos coube a sorte de ocupar nele o lugar mais interessante. É que talvez em nenhum outro, além do espectáculo de luzes das galáxias, e do aterrador silêncio do éter, seja possível contemplar esse universo a tornar-se pequeno diante de um dos seus elementos. Porque, por mais espaçoso que seja este mundo que habitamos, na verdade, ainda que seja infinito, todo ele, e todos os outros que possam existir, cabem dentro da ideia humana designada pela pequenina palavra «ser». E por mais profundos que sejam os abismos que se encontrem no espaço sideral, nenhum é realmente tão profundo e tão terrível como aquele que pode pronunciar com sentido a palavra «eu».

Estes aspectos assombrosos da vida do homem, que não encontram nada de remotamente semelhante na matéria bruta que compõe a teia das galáxias, talvez devido à sua familiaridade, são frequentemente postos de parte quando se começa a discutir o esmagamento do homem pelas forças da matéria. Mas, quando são considerados, é o universo que parece pequeno e o homem grande; porque um homem pode conter em si o universo inteiro. Não é uma metáfora, mas é o fundamento de toda a ciência. A nossa mente recebe em si todas as coisas na unidade fundamental da sua natureza. Os demais seres neste mundo são apenas o que são. O homem, porém, é também o que os outros são, porque recebe em si a ideia que os distingue e lhes confere o seu tipo próprio; e, ainda assim, é mais o que é do que todos, porque pode dispor de si mesmo da maneira que nenhum outro pode.

É ele o verdadeiro malabarista de universos que um misterioso desenho de Grandville evoca. E nada disto tem comparação com qualquer coisa que vemos. Porque dos muitos universos que possa haver, um não cabe dentro de outro - mas todos, sem excepção, estão dentro do homem.

terça-feira, 30 de setembro de 2014

Da eternidade do mundo


Houve um problema teológico comum - entre tantos outros também partilhados - que vibrou as cordas do pensamento muçulmano e do pensamento cristão medievais, com apenas poucos séculos de intervalo. Digo problema teológico, mas não era menos um problema filosófico, porque a teologia serve-se da filosofia - ancilla theologiae - para alcançar as conclusões que constituem o seu objecto próprio. O mote do problema, que suscitou numerosas paixões, bem como uma infindável permuta de argumentos com a pretensão de provar cada uma das partes da controvérsia, foi dado pela descoberta da doutrina aristotélica, primeiro pela escolas de teologia muçulmanas, depois, pelas escolas de teologia cristãs. A questão era a da eternidade do mundo - é o mundo eterno ou teve um primeiro momento no tempo?; no seu sistema de coisas, Aristóteles pressupõe a eternidade da matéria, porém, a revelação corânica e a revelação bíblica descrevem com suficiente clareza a criação do universo no tempo; a Bíblia diz: «No princípio, criou Deus o céu e a terra» (Gn, 1:1), e o Alcorão fala de Allah como aquele que «criou a Terra em dois dias» (Surata 41:9) - eis, pois, o conflito surgido no seio das escolas das duas tradições religiosas. A razão confirma a fé neste ponto ou desmente-a?; ou, simplesmente, emudece? 

Al-Farabi, Avicena e Averróis, os nomes sonantes da filosofia islâmica do tempo, apoiaram decididamente a tese da eternidade do mundo - o que levou, por seu lado, os teólogos, com o fito de defender a Revelação, a querer provar que o mundo começara em um dado momento. É que, além disto, a resposta a esta pergunta é fecunda de posteriores consequências: como conciliar a causalidade necessária do universo com a liberdade divina?; a contingência temporal da criação, pelo menos, é sinal evidente de um acto de vontade do Criador. Al-Ghazali tomou a seu cargo a missão de refutar o aristotelismo que se apoderara da escola árabe e autografou uma Destruição dos Filósofos - obra que mereceu de Averróis, como se toda a discussão não fosse senão um círculo em que se pode girar indefinidamente, uma Destruição da Destruição dos Filósofos.

Tomás de Aquino, no opúsculo que redigiu contra os murmurantes, separa bem as águas. Eterno ou não o mundo, começado no tempo ou sem um primeiro momento em que existisse, nenhuma das partes da controvérsia põe dúvidas sobre a criação, que é uma questão de natureza, necessariamente abstraída de contingências temporais: o que é dependente, pode ser eternamente dependente. Por outro lado, como não entra na definição das coisas o tempo, não pode haver demonstração do começo do mundo - que o mundo começou, sabem-no os cristãos, com certeza de fé, mas nunca o saberão com certeza metafísica. O estudo do problema pertence à física, à ciência que estuda as coisas naturais, particularmente à sua parte experimental, que avança ao passo das hipóteses.

Ainda hoje, alguns filósofos há que querem provar por argumentos metafísicos o começo do mundo. Lembro-me, por exemplo, de William Lane Craig, que tem o ensejo de provar a premissa menor de um argumento para a existência da divindade, recorrendo aos paradoxos de Hilbert sobre o infinito. Antes dele, outros falaram da impossibilidade de uma duração infinita, da impossibilidade de percorrer ao infinito as unidades sucessivas de tempo. Vãs elocubrações. Tomás de Aquino já indicara a falácia destes raciocínios, séculos atrás, em um breve parágrafo: a totalidade do tempo não é dada a uma só vez, mas sucessivamente; o passado deixou de existir e o futuro ainda não é: não há infinito numérico actual, acompanhado das suas contradições. A imaginação atalha pelo caminhos do pensamento e confunde-lhe as inferências.

As melhores evidências de um começo do universo - apenas e sempre prováveis - são as fornecidas pela astrofísica contemporânea. Vesto Slipher anunciou, no início do século XX, que o universo estava a fugir de nós, pelo que a jornada cósmica deverá ter um ponto de partida. As observações de Hubble confirmaram-no. A hipótese da grande explosão primordial de uma singularidade de matéria, a partir da qual o universo ainda hoje se expande, sobre o fluxo de energia que dali resultou - conhecida como teoria do Big Bang -, parece apontar o caminho de regresso a um começo de tudo, sinalizado pela radiação cósmica de fundo daquele deflagração genésica.

E há consequências racionais a tirar deste facto - suposta a sua verificação? Sim. Mas a reflexão filosófica de muitos séculos já lhe apôs os limites: não é necessário prová-lo, ou sequer supô-lo, para adquirir a certeza da dependência do mundo corpóreo da acção criadora de Deus.